Por que muitos restaurantes estrelados não fecham as contas?

Há coisa de seis anos, Felipe Bronze avistou em seu restaurante mais incensado, o carioca Oro, um respeitado crítico gastronômico. Quando este acabou de comer, ouviu dele o seguinte: “Gostei muito, mas acho que você está perdendo a coragem. Seus menus anteriores eram mais desafiadores”. O comentário, jura o chef-celebridade, foi recebido como um elogio. “Foi a melhor coisa que ele poderia ter dito”, diz Bronze, hoje com 45 anos. “Não quero mais, e isso se deve à maturidade, servir receitas malucas só para surpreender meia dúzia de pessoas.”
Em funcionamento desde 2010, o Oro é considerado um dos maiores representantes da alta gastronomia, ou alta cozinha, no país. Além dele, só mais dois restaurantes brasileiros ostentam duas estrelas Michelin, os paulistanos Ryo Gastronomia e D.O.M, este do chef Alex Atala (o Tuju, o quarto, também em São Paulo, ganhou um ponto final na quarentena).
No Leblon, o Oro trabalha só com menu degustação. O mais em conta, apelidado de afetividade, sai a R$ 545 – ou R$ 795, com harmonização de vinhos. A única outra opção, o menu chamado de criatividade, custa R$ 655 – com vinhos a conta vai para R$ 995. Ambos começam com 11 entradinhas para comer com as mãos, a exemplo da ostra com sorbet de caipirinha sobre crocante de torresmo.
O que muda entre um menu e outro é a quantidade de pratos principais – dois ou quatro. A cavaquinha com alho-poró e pistache é um dos mais elogiados, assim como o peixe com pamonha e caldo de milho tostado. As sobremesas são as mesmas para ambos os percursos.
Com capacidade para 45 pessoas, o estabelecimento vai muito bem, obrigado. “O Oro vive lotado há muitos anos e nunca deu um mês de prejuízo”, revela Bronze, descartando o período de portas fechadas na quarentena. É o restaurante mais rentável do chef. O outro, o Pipo, em São Paulo, trabalha com margens de lucro mais apertadas por apostar em preços mais palatáveis. Bronze também comanda o Taraz, sucesso instantâneo dentro do Rosewood São Paulo (o restaurante pertence ao hotel).
Boa parte do sucesso do Oro é creditada à guinada da cozinha. “Deixar os clientes felizes deveria ser o maior propósito de todo chef”, afirma Bronze, justificando o discreto pé no freio na inventividade – que, em excesso, nem todo mundo engole. “Alguns restaurantes dão a entender que Deus vai tocar na língua dos clientes, mas isso não vai acontecer”, ironiza o cozinheiro.

Como o restaurante dá lucro?
O sucesso financeiro da casa é atribuído ao rígido controle de gastos. “O restaurante não gasta dinheiro com bobagens”, diz, dando caviar e trufas como exemplos. “São ingredientes que não fazem meus olhos brilharem. Prefiro gastar com peixes mais frescos e com camarão sem sulfito.” Aproveita para lembrar que os ingredientes estão longe de representar os maiores gastos do negócio. “A localização custa muito, assim como a energia elétrica e o pagamento dos funcionários”, resume.
O Oro emprega 23 pessoas e, segundo Bronze, com salários acima da média do mercado. Estagiários não remunerados? Nem pensar. “Nunca gostei de estagiar de graça e o Oro não é uma escola de gastronomia”, justifica. “Se fosse uma escola, aliás, deveria cobrar dos alunos e não recebê-los de graça.”
Por que um restaurante dá prejuízo?
Diz tudo isso para comentar o bombástico fechamento do Noma, que ocupou a dianteira do ranking The World’s 50 Best Restaurants em cinco edições – hoje é hors concours ao lado do El Bulli e da Osteria Francescana, entre outros endereços desse patamar. A principal razão para o ponto final do Noma, previsto para 2024, é esta: a conta não fecha. “Restaurantes que se mantêm abertos, mas não lucram, prestam um desserviço para o setor”, critica Bronze.
Ao jornal “The New York Times”, o chef dinamarquês René Redzepi, dono do Noma, alegou que o restaurante se tornou “insustentável, financeira e emocionalmente”. O estabelecimento dará lugar, em 2025, ao Noma 3.0. Trata-se de um “laboratório gastronômico” destinado ao desenvolvimento de receitas e que servirá de base para versões pop up do Noma espalhadas pelo mundo. “Muito do nosso tempo será gasto na exploração de novos projetos e no desenvolvimento de muitas outras ideias e produtos”, adiantou o cozinheiro.

Inaugurado em 2003, o negócio de Redzepi foi o grande responsável por incluir a culinária nórdica no mapa da alta cozinha – e em pé de igualdade com as de Paris, Nova York ou Tóquio. Em 2019, de acordo com a plataforma Statista, os restaurantes dinamarqueses movimentaram US$ 7 bilhões. Corresponde a um salto de 479% em relação a 2015.
Em 2019, mais de um quarto dos turistas estrangeiros desembarcaram no país movidos, principalmente, pela gastronomia. O atual primeiro colocado no 50 Best, o Geranium, se encontra em Copenhage – e também o 18º, o Alchemist, e o 38º, o Jordnær.
Detentor de três estrelas Michelin a partir de 2021 – eram duas desde 2008 -, o Noma deu fama ao “foraging”, prática que consiste em se embrenhar na natureza em busca de plantas alimentícias não convencionais com o intuito de utilizá-las na cozinha. O restaurante teve um hiato entre 2016 e 2018, quando reabriu, autointitulado Noma 2.0, no endereço atual – daí o 3.0 de agora.
Para provar as criações de Redzepi, sempre foi preciso reservar com muuuita antecedência. O menu da próxima temporada, que começa em outubro, custa a partir de 3.500 coroas, o equivalente a R$ 2.600. Com vinhos são mais de R$ 4 mil. O tartare de carne curado em algas marinhas e salpicado de formigas e o creme de cérebro de rena com pólen de abelha dão uma ideia do que o endereço costuma servir.

A nova guinada do restaurante, no auge, remete ao fechamento do mítico espanhol El Bulli, em 2011, do chef Ferran Adrià, o papa da gastronomia molecular. O restaurante na Catalunha ganhou um basta – e foi transformado em uma fundação quando recebia 1 milhão de pedidos de reservas por ano, embora tivesse capacidade para atender apenas 8 mil pessoas a cada 12 meses. O que não se sabia era que o El Bulli acumulava um prejuízo na ordem de meio milhão de euros por ano.
O tamanho do rombo do Noma, se é que existe, não foi divulgado – sabe-se que, em 2021, a casa amargou um prejuízo de US$ 240 mil. A partir de outubro do ano passado, Redzepi precisou engolir uma despesa extra de pelo menos US$ 50 mil mensais. Refere-se ao pagamento de estagiários, até então contratados de graça e aos montes.
No ano anterior à pandemia, segundo o “Financial Times”, o Noma mantinha 34 cozinheiros pagos e cerca de 30 estagiários não remunerados. Passou a pagar esses últimos, após quase 20 anos, só depois que todo mundo ficou sabendo do gosto da casa pela mão de obra gratuita.
Notícias como a do fechamento do Noma são um prato cheio para quem adora alardear que a alta cozinha está com os dias contados. Não foi diferente quando o espanhol Dani García encerrou as atividades, em 2019, do restaurante que levava seu nome – ficava em Marbella, na Espanha. O chef anunciou o basta logo depois que o estabelecimento foi premiado com três estrelas Michelin – ostentava duas desde que abriu as portas, em 2014.

O restaurante deu lugar ao Leña, casa de carnes hoje com duas unidades e uma terceira saindo do forno. “Não estou devolvendo as estrelas, vou ficar com elas para sempre”, declarou o cozinheiro, que adquiriu a primeira de sua vasta constelação aos 25 anos, à frente do Tragabuches, em Málaga, reaberto no ano passado. “Vou levar a minha visão da gastronomia andaluza a todos os cantos e a todos os públicos do mundo”, prometeu. Atualmente, ele comanda 12 empreendimentos. O único estrelado – duplamente, aliás – é o Smoked Room, em Madri.
“Até uns dez anos atrás, uma estrela Michelin era uma benção, mas nesta economia virou uma maldição”, declarou a chef Karen Keygnaert em 2017, quando encerrou as atividades do triplamente estrelado A’Qi, nos arredores de Bruges, na Bélgica. Depois abriu o informal Cantine Copine, no qual, avisou, não gostaria de ver os discretos inspetores do livrinho de capa vermelha. “As pessoas vão para restaurantes com estrela apenas em ocasiões especiais”, justificou.
O fator pandemia
No Brasil, Roberta Sudbrack foi pelo mesmo caminho ao encerrar, em 2017, as atividades do restaurante carioca que levava seu nome. Com uma estrela, servia menus degustação, com até nove etapas, a R$ 450. Em seguida, a chef abriu a lanchonete Da Roberta, no Leblon, que vende sanduíches a cerca de R$ 25 (atualmente só para entregas). Em 2018, ela montou na mesma cidade o descontraído Sud, o Pássaro Verde, no Jardim Botânico.
O ponto final do Tuju, na Vila Madalena, entrou na conta da pandemia. No segundo semestre de 2020, o chef Ivan Ralston concluiu que era das duas, uma: 1) insistir no estrelado restaurante, decisão que, em razão dos protocolos em vigor, o obrigaria a demitir parte considerável dos funcionários; 2) ou transformá-lo em um novo negócio com mais chances de prosperar naquele contexto.

Daí o surgimento do Tujuína, de curta duração, que apostava em receitas à la carte e registrava tíquete médio de R$ 200. O Tuju só servia menu degustação e o tíquete médio era de R$ 625. Mais: conseguia atender só 30 clientes por dia e muitos eram turistas internacionais, que só voltaram a dar as caras em peso na cidade há pouco tempo.
Mas Ralston não desistiu do Tuju. Este será reaberto, no Jardim Paulistano, entre maio e junho. Enquanto o antigo tinha 80 lugares, o novo terá 26. “Restaurantes de ‘fine dining’ muito grandes, com dezenas de funcionários, têm poucas chances de lucrar hoje em dia”, diz Ralston. “Daí a importância de apostar em operações enxutas.” O novo Tuju também terá um bar de vinhos, promoverá cursos livres e fará as vezes de centro de pesquisas. “A meta é diversificar as fontes de renda”, explica o cozinheiro.
Para muitos empresários do ramo, menus com preços mais em conta têm se mostrado bem mais saborosos. É o caso do restaurateur Marcelo Fernandes, que já foi sócio do D.O.M. No mesmo imóvel no qual tentou que três outros restaurantes vingassem – o Clos de Tapas, depois o Clos e, por fim, o izakaya Kurâ – ele inaugurou o Foglia Forneria Artigianale em março de 2021.
Na Vila Nova Conceição, a novidade aposta principalmente em pizzas, que custam a partir de R$ 61,39, e paninis a no máximo R$ 67,39. O cardápio é assinado por uma dupla de chefs: Franco Ravioli, que criou a rede Pizza Bros, nos anos 1980, e seu filho, Lorenzo, de 20 anos, que venceu a primeira edição do reality show “MasterChef Junior”, em 2015.
Fernandes também é sócio da hamburgueria Tradi, que dobrou de tamanho na pandemia – hoje tem oito unidades e duas dark kitchens -; da Panetteria Attimino; da Mercearia do Francês; e do Kinoshita. É só nesse último, dono de uma estrela Michelin, que a aposta na alta cozinha continua. Harmonizado com champagne Krug, o menu degustação com dez etapas custa R$ 2.367,81, para duas pessoas.
No ano passado, Fernandes fechou o Attimo per Quattro, transformado em seguida, por outros empresários, no segundo Gula Gula de São Paulo. O falecido restaurante nasceu como Attimo, em 2012, com Jefferson Rueda à frente da cozinha. Três anos depois, o chef deu adeus ao restaurateur para montar aquele que muitos consideram o melhor restaurante do Brasil, a Casa do Porco.
Sucesso estrondoso, a Casa do Porco ocupa a sétima posição no 50 Best. É um representante da alta cozinha? A julgar pela técnica de Rueda e de sua ex-mulher e sócia, a chef Janaína Rueda, com quem divide o comando do restaurante, a resposta é sim. A inventividade do cardápio, a qualidade dos ingredientes e a preocupação com a sustentabilidade sugerem o mesmo.
Os Rueda defendem, porém, a informalidade – que muitos enxergam como uma barreira para a alta gastronomia – e, dentro do possível, preços democráticos. O menu degustação da casa, que vive lotada dia sim, dia também, custa R$ 240 (com harmonização o preço sobe para R$ 390). Não à toa, a única honraria que o Michelin concedeu à Casa do Porco foi o selo “bib gourmand”. A distinção só é atribuída a restaurantes com bom custo-benefício.
Caros e em alta
Exemplos de casas de alta cozinha que se mantêm em alta apesar dos preços salgados não faltam no país – do Oro ao curitibano Manu, da chef Manu Buffara; do carioca Oteque, do chef Alberto Landgraf, ao mineiro Glouton, de Leo Paixão.
O Evvai, no Jardim Paulistano, serve apenas um menu degustação que custa R$ 677 (ou, com a harmonização mais em conta, R$ 1.196). Com 13 etapas, a sequência é renovada de três a quatro vezes ao ano e pode ser ajustada para veganos ou vegetarianos. O espaguete com couve-flor, crisps e caldo de galinha é um dos atuais pontos altos, assim como a bomba salgada com recheio de vieira selada, lardo e tomate fermentado. Comandado pelo chef Luiz Filipe Souza, o Evvai ostenta uma estrela Michelin e foi eleito o 67º melhor do mundo.
R$ 1.400 por pessoa
Uma das últimas novidades cariocas nesse universo ganhou o nome de Mesa do Lado. Trata-se de um restaurante sem paralelo criado pelo chef Claude Troisgros em parceria com o diretor artístico Batman Zavareze. Funciona em um pequeno espaço de eventos dentro do Chez Claude, no Leblon. Com apenas 6 mesas e 12 lugares no total, estreou em agosto passado. Sim, estreou, pois a clientela vai até lá para comer, mas também para se deliciar com a trilha sonora e as projeções que roubam a cena enquanto o jantar é servido.
Ao longo de 2h20, as paredes do espaço são tomadas por fotos de família, poemas e até projeções de Troigros e da cantora Roberta Sá, responsável pela canja musical. A comida, porém, não tem papel secundário. À vista de todos, a cozinha expede receitas surpreendentes como cappuccino de cogumelos, salmão com azedinha e wagyu com purê de aipim, batata-doce, blueberry, quiabo e molho bordelaise. O restaurante-show funciona só de quinta a sábado e não abre mão de reservas – quem chega depois das 20h fica de fora. Com harmonização, a experiência custa quase R$ 1.400 por pessoa.
Sustentabilidade financeira
Para contribuir com a sustentabilidade financeira de seu restaurante, o sofisticado Charco, o chef Tuca Mezzomo montou com o sócio-investidor uma nova empresa, a Saliva. A missão dela é contribuir com a gestão financeira dos empreendimentos dos quais virou sócia desde que a pandemia começou – os bares Carrasco e Guilhotina, o Chou, da chef Gabriela Barretto, o Donna, de André Mifano, e o Cuia Café, de Bel Coelho. A companhia também se encarrega da compra de ingredientes e de serviços de RH. “Muitos restaurantes de sucesso chegam ao fim por culpa de problemas de gestão”, diz Mezzomo. Mas o grupo, do qual o Charco também faz parte, não mete o bedelho em nenhuma cozinha.
Inaugurado em 2019, o Charco ocupa um charmoso sobrado no Jardim Paulista. Com apenas 40 lugares, emprega 16 pessoas. “Decidimos, desde o início, que faríamos alta gastronomia de maneira rentável”, recorda o cozinheiro gaúcho. Daí a escolha de um imóvel não muito grande, o comedimento na hora da reforma e a disciplina para manter os gastos sob controle. “É preciso controlar a toda hora o custo de cada mercadoria vendida”, receita.
A proposta do endereço, 35º colocado na versão latino-americana do 50 Best, é usar o fogo das mais diversas maneiras na cozinha. Quase todos os ingredientes são preparados ou finalizados na brasa, dos cogumelos utilizados em um dos pratos vegetarianos ao porco preto, servido com creme de milho. O tíquete médio é de R$ 310 e o menu degustação, com nove etapas, sai por R$ 290.
Inaugurado em 2021, o Naia, o segundo restaurante de Mezzomo, também fazia parte do grupo, que não revela quanto fatura, nem quanto foi investido até aqui. Especializado em pescados, o endereço preparava parte dos pratos com frutos do mar que nadavam em um aquário de água salgada instalado no salão. O restaurante durou apenas um ano. “O Naia estava faturando menos que o previsto, o que não é suficiente para nós”, resume o chef. Para se manter na alta gastronomia, às vezes é preciso cortar na própria carne.
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