O advogado que ajudou a estruturar fintechs como Nubank, Stone e PagSeguro

Bruno Balduccini estava em um voo para São Paulo, após uma reunião com mais de 20 representantes do Banco Central, quando recebeu um pedido. O advogado tinha ido a Brasília apresentar ao regulador um modelo de empréstimos ainda novo no país, que estava ajudando um cliente a montar. Na volta, um estagiário que havia acompanhado o encontro pediu ajuda para levar adiante um plano pessoal: ele queria assessoria para fundar sua própria fintech de crédito, mas não tinha dinheiro para contratar o escritório. Desse diálogo, ocorrido lá por 2014, nasceu o programa de aceleração de startups do Pinheiro Neto Advogados, que já colocou de pé empresas como Neon, Rebel, Spin Pay e Pier.
Naquele momento, antes da regulamentação das fintechs de crédito, a empresa que havia atraído a atenção do BC era a Enova, que veio para o Brasil querendo explorar um formato de empréstimos online já praticado nos Estados Unidos. Considerando os limites da legislação brasileira para esse tipo de operação, o advogado propôs uma solução na qual os recursos e os riscos seriam da Enova, mas haveria a intermediação de uma instituição financeira – sem a qual a concessão não seria possível. Em um primeiro momento, foi feita uma parceria com a financeira Sorocred e o modelo surpreendeu pela velocidade com que os valores foram emprestados, isso sem a abrangência física das instituições tradicionais, com agências espalhadas por todo o país.
No caso do estagiário, o que ele queria era pôr em prática um modelo peer-to-peer (P2P), ou seja, com pessoas emprestando entre si. “Começamos a pensar e falei: ‘Vamos fazer o seguinte, vamos te tratar como um cliente normal e jogar essas horas num copo que não importa para você nesse momento. Se der errado, paciência. Mas, se você conseguir captar algum dinheiro, a gente combina uma tabela e você tenta pagar os honorários. Se a gente conseguir recuperar um pouco a mais do que gastou, já valeu a pena’”, conta Balduccini.
A empresa que surgiu dessa primeira experiência foi a Biva, fundada pelo então estagiário do escritório Jorge Vargas Neto e que depois, no fim de 2017, foi comprada pela PagSeguro. Foi o primeiro caso de sucesso do programa de aceleração, do qual já participaram 49 startups. “Percebemos que tínhamos essa vocação, de pegar alguém muito pequeno, que não conseguiria pagar os honorários, deixar usufruir de toda a estrutura, e lá na frente poder ter um sucesso maior.”
Há cerca de 30 empresas no programa atualmente. Em um ambiente de taxas de juros em alta mundialmente, o cenário se torna especialmente hostil para as fintechs brasileiras, que perderam R$ 452 bilhões em valor de mercado nos últimos 12 meses. Balduccini afirma que, de fato, empresas têm captado recursos com avaliações iguais ou menores do que as obtidas em rodadas anteriores, enquanto algumas nem estão conseguindo levantar dinheiro. Ele acrescenta, no entanto, que isso não afeta o programa, voltado para o longo prazo. “A gente não olha soluços de mercado”, diz. “Certamente haverá um movimento de consolidação, que já começou, mas nos contratam também para fazer as operações de M&A [fusões e aquisições].”
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Não à toa, por sugestão de Balduccini, este “À Mesa com o Valor” foi realizado durante um almoço no próprio Pinheiro Neto Advogados – atualmente localizado às margens do Rio Pinheiros, em São Paulo. Com 52 anos, o advogado atua há três décadas no escritório. Nesta conversa, ele conta como foi trabalhar junto às principais instituições financeiras tradicionais, participar da construção de mudanças regulatórias e ajudar a estruturar boa parte das fintechs hoje famosas do país, como Nubank, Stone e PagSeguro – estas fora do programa de aceleração.
Paulistano, o advogado faz parte da primeira geração da família nascida no Brasil. Seus pais vieram da Itália para passar a lua de mel no país na década de 1960 e acabaram ficando. Quando entrou no escritório, em 1991, Balduccini estava no terceiro ano de direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ele vinha de um estágio na Mastercard e, por isso, foi alocado no grupo dedicado ao setor bancário, sob o comando do ex-sócio Antonio Mendes.
“Quando eu já era um advogado júnior, Mendes me pediu um memorando de um assunto complexo, que não deve ter ficado muito bom. Então, ele me chamou em uma sexta-feira, umas 18h30, ligou para a esposa e avisou que não iria para o jantar. Sentou ao meu lado e revisou todo o memorando comigo, linha a linha. Isso me chamou a atenção, um senhor, referência em advocacia bancária, que parou para explicar tudo para um cara que tinha acabado de começar. Pensei que queria ser como ele.”
No fim da década de 1990, como parte de um programa de formação de funcionários, Balduccini fez mestrado na Universidade de Boston, nos Estados Unidos, e trabalhou por um ano no escritório Sullivan & Cromwell LLP. Ele foi para o exterior já acompanhado de sua esposa, Natalie, com quem anos mais tarde teria os gêmeos Stephanie e Ricardo, hoje com 17 anos. Filha de ingleses, Natalie nasceu em Porto Alegre, mas viveu boa parte de sua vida nos Estados Unidos, no Reino Unido e na Suíça, onde se formou em hotelaria. Nesse período, o casal considerou a possibilidade de continuar vivendo fora do país, mas acabou decidindo voltar.
Percebemos que tínhamos essa vocação, de pegar alguém pequeno, deixar usufruir de toda a estrutura, e lá na frente poder ter um sucesso maior”
Logo que chegou ao Brasil, Balduccini recebeu de Mendes um pedido para ajudá-lo a escrever o capítulo de um livro. Tratava-se de uma comparação detalhada da regulamentação bancária brasileira com a americana e a europeia. “Esse trabalho virou 40 dias de dedicação exclusiva, minha mulher ficou bravíssima comigo porque a gente não conseguia nem escolher um carro juntos. Foi uma loucura de trabalho, mas foi muito interessante porque me aprofundei em direito bancário num nível que poucas pessoas tinham.” O advogado virou sócio do escritório em 2001, aos 30 anos, e, após um período de transição, começou, de fato, a tocar a área bancária junto com outros sócios.
O cardápio preparado pelo escritório para a nossa conversa incluía terrine com folhas e torradas como entrada. Para o prato principal, nós dois escolhemos pescada com alcaparras e limão siciliano, acompanhada de moqueca de banana e palmito. Era um dia frio em São Paulo, mas Balduccini havia acordado cedo para nadar, um interesse que compartilha com os filhos desde sempre.
No caso dos gêmeos, no entanto, o gosto pelo esporte foi levado a outro patamar. Ambos treinam profissionalmente e, no ano passado, Stephanie participou da Olimpíada de Tóquio. Aos 16 anos, foi a atleta mais jovem a representar o Brasil na natação desde a década de 1980. Em junho, ela também esteve no Mundial de Esportes Aquáticos em Budapeste, na Hungria. O plano é que os dois filhos se mudem para os Estados Unidos no próximo ano para estudar e treinar em universidades de lá. “Eu brinco com a minha mulher que, daqui a um ano, a gente vai estar em uma casa grande, com quatro cachorros e sem crianças.”
Balduccini diz que foi a longa experiência no campo regulatório, e o consequente trabalho junto a todas as instituições tradicionais, que abriu caminho para a atuação posterior também com as fintechs. Com o passar dos anos, ele e o colega José Luiz Homem de Mello se dedicaram a criar um grupo bancário que fosse referência no mercado. “Montamos um time único, ganhamos uma eficiência incrível e criamos um grupo que começou realmente a fazer diferença.” Hoje, a área conta com sete sócios – todos “prata da casa”, destaca – e cerca de 55 advogados e estagiários.
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O mundo fintech começou a entrar naturalmente na equação a partir de 2010, conforme a evolução tecnológica foi alterando a dinâmica da área bancária. Naquele momento, ao mesmo tempo que novas empresas buscavam espaço no mercado de meios de pagamento, iam ganhando força questionamentos históricos da sociedade em relação à concentração bancária e aos altos juros no país, lembra o advogado. Em um contexto de maior estabilidade econômica, o BC, que até então havia priorizado a solidez do sistema financeiro, começou a olhar mais a fundo também para a agenda de competição.
Foi uma época de muita interação com a autoridade monetária. “Começamos a ver players como a PagSeguro, por exemplo, que era cliente, querendo virar credenciador e recebendo um ‘não’ da bandeira. E a gente levava essas discussões ao regulador.” Quando, em 2013, foi aprovada a lei que dispôs sobre as instituições de pagamento, o escritório “já estava lá dentro”, afirma. “O BC tem um critério muito democrático, de mandar as regras que pretende implementar para consulta pública. Fizemos muitos comentários e mostramos muitos modelos de negócios.” Devido à experiência na área regulatória, a equipe começou a ser procurada pelas empresas que surgiam em meio a essas mudanças no mercado.
“O Nubank, por exemplo, nasceu aqui”, conta Balduccini. De acordo com ele, era uma sexta-feira quando David Vélez e Cristina Junqueira, fundadores da fintech, foram conversar sobre o formato de cartão de crédito que queriam implementar.
“A Cris me contou o modelo e ficamos debatendo sobre a possibilidade de uma emissora de cartão de crédito não bancária cobrar juros bancários de seus clientes sem usar um banco. Ela trouxe uma súmula dos tribunais superiores para provar o seu ponto. Eu não concordei. Batemos de frente e ficamos quase duas horas debatendo. Ela é uma pessoa muito inteligente e argumentativa. Insisti na minha sugestão, de que seria necessária a parceria com uma instituição financeira, mas achava que não havia convencido os dois. Quando saíram, pensei: ‘Nunca mais vão voltar’. Para a minha surpresa, no dia seguinte, Cris e David me ligaram e começamos a trabalhar na criação do Nubank do zero.” Com o tempo, a instituição passou a contar também com uma financeira no grupo e a operar, ela mesma, o crédito rotativo.
Nesse ponto da conversa, pergunto se essa proximidade com as novatas do mercado não tornou desconfortável o relacionamento com as instituições tradicionais, clientes há décadas. Com o forte crescimento das fintechs nos últimos anos, teve início uma disputa agressiva entre elas e os bancos incumbentes. Essa briga também se manifestou por meio de discussões regulatórias importantes, como a que abordou o tratamento prudencial de conglomerados liderados por instituições de pagamentos. Balduccini admite que, de início, ficou preocupado com a reação dos grandes bancos, mas diz que, no fundo, o que importa são as “horas de voo”.
“Eu tinha um medo muito grande de os bancos tradicionais ficarem incomodados. Mas existe uma coisa na área regulatória que é uma verdade: é como piloto de avião, é hora de voo. A experiência nos assuntos contribui para você dar conselhos melhores para os seus clientes. Obviamente que as informações de cada um são sigilosas, mas o nosso conhecimento ajuda a achar soluções. É por isso que nos contratam”, afirma. “Trabalhamos para todos os bancos e acho que conseguimos mostrar que somos agnósticos.”
De acordo com ele, depois de décadas atuando na área, a parte mais estimulante do trabalho é, justamente, esse exercício de buscar soluções para viabilizar projetos ainda não existentes no país. Lá atrás, no caso da Enova, por exemplo, o formato testado era o de operação ativa vinculada, que existia, mas não havia sido pensado para aquele tipo de situação. A empresa fazia um depósito em uma instituição financeira parceira, que, por sua vez, vinculava a devolução dos recursos ao pagamento dos empréstimos pelos tomadores.
Foi por perceber o potencial de crescimento do modelo que o advogado levou o projeto ao BC. “Eu, pessoalmente, queria também dormir tranquilo, queria que o BC falasse que estava tudo ‘ok’. E aí o regulador surpreendeu. Achou a proposta interessante e quis acompanhar a empresa de perto, mesmo não sendo regulada.” Rogério Cardozo, diretor executivo da Simplic, braço da Enova no país, descreve esse processo inicial como a construção de um “lego”. “Como tudo na vida, você monta, aparece um probleminha aqui e ali, você arruma, aí vai ficando grande e vão sendo necessárias estruturas mais próprias.” Atualmente, o modelo da empresa inclui também a utilização de um fundo de investimento em direitos creditórios (FIDC), explica Cardozo.
Experiências como a da Enova e da Biva acabaram contribuindo com a construção do que depois se tornou a regulamentação das fintechs de crédito. “E aí o que aconteceu com essas fintechs? Um monte de investidor quis comprar. Tivemos vários casos de sucesso porque, de uma certa forma, influenciamos na regra”, afirma Balduccini. Vargas Neto, fundador da Biva, diz que a parceria com o escritório foi além de aspectos jurídicos e regulatórios. “Nos ajudaram inclusive na apresentação, negociação e fechamento da venda para a PagSeguro. Foi realmente fora da curva.”
O programa de aceleração trouxe alguns benefícios importantes para o Pinheiro Neto, destaca Balduccini. Entre eles, está justamente essa maior participação no processo de construção do arcabouço regulatório. “Nossa experiência com o BC chamou muito a atenção. Quando a Pier, que tem um modelo superdinâmico, superlegal, veio para cá, por exemplo, a gente chegou na Susep [Superintendência de Seguros Privado] e falou: ‘Por que vocês não mudam a regra? Do jeito que está a Pier nunca vai conseguir ser uma seguradora. Por que não seguem o modelo do BC de criar segmentação, uma estrutura superleve?’. Então, a gente influenciou a criação das insurtechs.” A Pier, primeira autorizada a atuar dentro do sandbox da Susep – ambiente regulatório experimental para possibilitar a implantação de projetos inovadores – foi também a primeira a receber a licença definitiva da autarquia, no início de junho.
Procurados, Nubank, PagSeguro, Pier, Banco Central e Susep não enviaram comentários adicionais.
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Conhecido por trabalhar com as grandes empresas tradicionais do mercado, o escritório passou a ser também reconhecido como uma empresa “moderna”. “A gente tem décadas de existência, mas as pessoas falam: ‘Esses caras mexem com fintechs, ajudam a escrever normas, eles são parceiros. A gente começou a ser procurado por várias startups, de várias modalidades. Foi importante para o nosso ‘novo passo para o futuro’, de como iríamos nos posicionar.”
Foram 13 casos de sucesso no programa até agora – e houve insucessos também, naturalmente. A iniciativa começou bastante concentrada em empresas de crédito, mas foi sendo expandida para diferentes áreas, como seguros, “healthtech”, infraestrutura de pagamento, “blockchain” e finanças descentralizadas (DeFi, na sigla em inglês). Os contratos são de três a cinco anos e é estabelecida uma tabela de pagamentos, ou seja, porcentagens das captações que são destinadas ao escritório. Passado o período do contrato inicial, a maior parte das empresas continua como cliente regular, conta o advogado.
Não há uma periodicidade para a entrada de startups no programa e a seleção considera tendências de mercado. Um setor de interesse no momento é o de saúde. O escritório está de olho nas discussões sobre o “open health”, o equivalente ao “open banking” na saúde. “A falta de informações na saúde também gera um custo mais alto, uma ineficiência. É algo distante ainda, mas estamos começando a olhar para isso.” Câmbio é outro ponto de atenção, na esteira das mudanças promovidas pelo BC e pelo Conselho Monetário Nacional no ano passado, que permitiram que instituições de pagamento passem a atuar nesse mercado, e também da aprovação do novo marco cambial, em fase de regulamentação.
O mesmo o advogado diz a respeito das finanças descentralizadas. O modelo ainda é bastante incipiente, mas já há uma primeira empresa no programa que busca operar nesse segmento no país, a antiga Nest, que agora se chama AmFi. “A gente está fazendo o primeiro MVP [produto mínimo viável], seguindo o mínimo necessário de acordo com a lei brasileira. Estamos usando as estruturas atuais e a tecnologia.”
Assim como ocorreu no caso das fintechs de crédito, a ideia é, no futuro, também levar as novas experiências aos reguladores, entender o que pensam sobre os modelos e continuar a participar da construção das evoluções do mercado. “É uma semente do futuro”, diz Balduccini.
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