Para Pascal Lamy, mundo entra em ‘slowbalization’. Saiba o que é isso

A geopolítica voltou a se impor sobre a geoeconomia. A principal manifestação dessa nova realidade mundial é a rivalidade entre os Estados Unidos e a China, e isso se reflete também na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas o mundo não vai se desglobalizar. O que vai acontecer é uma globalização diferente, um pouco menos rápida do que até então, ou seja, uma “slowbalization”.
A análise é de Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio entre 2005 e 2013, comissário de comércio da União Europeia de 1999 a 2004, consultado e ouvido por autoridades do mundo inteiro.
Nesta entrevista, Lamy examina o novo contexto internacional e seus riscos. Para o Brasil, sugere que o país não deveria se contentar “em surfar em momentos de especulação com commodities’’ e sim em realmente fabricar com valor agregado criando a base natural de que dispõe. Leia os principais trechos da entrevista.
Como o senhor vê a nova configuração geopolítica mundial com a invasão da Rússia e o que está por trás de tudo isso?
Pascal Lamy: O que está por trás disso tudo é que desde há uma dezena de anos, desde a crise financeira global de 2008, a chegada de Xi Jinping [ao poder na China], o retorno de Putin, a ascensão de Erdogan na Turquia, de Bolsonaro no Brasil, de Duterte nas Filipinas, a geopolítica tomou conta, voltou a se impor, sobre a geoeconomia. Digo voltou a se sobrepor, porque no curso da história da humanidade, a economia, o progresso da tecnologia, da ciência e as rivalidades entre potências – no conjunto – a geopolítica dominou a geoeconomia. É a razão pela qual houve tantos conflitos e guerras. Foi em geral não por razão econômica e sim por razão geopolítica, e notadamente as duas últimas guerras mundiais. A partir da queda do Muro de Berlim [um dos símbolos da Guerra Fria, na noite de 9 a 10 de novembro de 1989] tivemos 20 anos nos quais podemos pensar que o círculo se inverteu e que a geoeconomia ia no futuro se impor sobre a geopolítica. Eu escrevi um livro com Nicole Gnesotto, que se chama “Para onde Vai o Mundo’’, publicado há quatro anos, no qual dialogamos, e eu digo que a geoeconomia é mais importante que a geopolítica, e ela retruca que não, que eu estou errado. Receio que ela tinha razão, estamos num período em que a geopolítica se impõe sobre a geoeconomia. E a principal manifestação dessa nova realidade mundial é a rivalidade entre os EUA e a China. É pano de fundo dessa situação. Lembra a ‘armadilha de Tucídides’ [historiador grego, que narra a guerra do século V. a.C entre Esparta e Atenas]. Ele menciona que quando uma potência dominante vê a ascensão de outra potência que pode se tornar dominante, então elas fazem a guerra. Ora, os EUA e a China não estão em guerra, mas estão numa rivalidade que toma forma considerável e não creio que Putin teria invadido a Ucrânia se ele não tivesse contado com uma forma de aliança com a China. Eu não dissocio a invasão da Rússia da rivalidade sino-americana e da ascensão da potência chinesa, considerando que Putin e Xi Jinping têm em comum a visão. Esta é a armadilha que eles nos armaram, que diz que o Ocidente está desaparecendo e o Oriente o está substituindo, e que isso seria então a vitória final das autocracias contra a democracia. Eu não compartilho dessa narrativa e considero-a muito perigosa. E digo que toda interpretação de que a situação atual representa um combate entre o Ocidente e o Oriente é um erro profundo. Não há só democracias no Ocidente, nem só autocracias no Oriente.
Como o título de seu livro “Para Onde vai o Mundo” se encaixa nesse novo contexto geopolítico
Lamy: Eu constato hoje que a geopolítica retomou o poder sobre a economia e nesse equilíbrio, que mudou várias vezes ao longo da história, as vias do futuro estão abertas. Não sou marxista 100%, mas considero que a infraestrutura formata a superestrutura. Ora, a infraestrutura resta aquela da globalização, do capitalismo de mercado e dos avanços tecnológicos e científicos. A geopolítica e a geoeconomia estão em equilíbrio diferente, mas o que não mudou é que o capitalismo de mercado, em sua versão descentralizada ou em sua versão estatizada, americana ou chinesa, continua a aumentar sua dominação no mundo. Não há sistema alternativo ao capitalismo de mercado no plano econômico, com sua vontade de lucro, rentabilidade do capital e que provoca inovações importantes, com velocidade científica altamente considerável, e tudo isso sendo feito de forma globalizada. Não digo que a globalização de amanhã será a mesma de ontem, mas o que digo é que o mundo não vai se desglobalizar.
A interpretação de que a situação atual representa um combate entre o Ocidente e o Oriente é um erro profundo”
O senhor fala agora de “slowbalization’’, globalização menos rápida.
Lamy: Sim, uma globalização diferente, um pouco menos rápida do que no passado. Quando olho os dados, tanto quanto podemos mensurar, vejo sinais de desglobalização, favorecendo um pouco de reshoring [repatriação de fábricas, favorecendo a produção doméstica], um pouco de nearshoring [transferência de produção para países mais próximos], e um pouco do que chamamos agora de safeshoring [assegurar o suprimento]. Há efetivamente um certo número de empresas chinesas que não estão mais listadas na Bolsa de Nova York e os americanos as empurraram para o território chinês. Mas, de outro lado, vejo a digitalização aumentar consideravelmente o comércio de serviços, e o teletrabalho atravessa as fronteiras. Há milhões de médicos indianos que estão prontos a entrar no mercado mundial de telediagnóstico. E quando isso ocorrer, vai haver profundas mudanças, porque o que é considerado serviço de proximidade, graças à tecnologia, inteligência artificial ou data-mailing, vai se globalizar. Se medirmos o aumento exponencial de fluxos de dados nas trocas internacionais, com valor agregado, então não tem comparação, e o que aumenta na globalização é muito mais importante do que o que diminui.
O que mudou, então?
Lamy: Um valor que mudou foi o risco. O risco financeiro, que obrigou a recapitalizar o sistema capitalista; o risco ambiental, que faz absolutamente aumentar o preço do carbono; o risco sanitário, pois sabemos que uma pandemia mortal pode se propagar a toda velocidade e é perturbadora; e o risco de segurança nacional. Eis quatro áreas nas quais o capitalismo de mercado está reavaliando os riscos que comporta. É assim uma globalização diferente, mas não uma desglobalização.
No cenário de fragmentação, como o senhor vê essa recente cobrança da seguradora chinesa Ping An, o maior acionista do HSBC, para o banco separar suas operações no Ocidente e na Ásia?
Lamy: Isso faz parte dos sinais de desglobalização, e reconheço que eles existem. Mas se compararmos, os sinais de globalização são ainda mais fortes. Evidentemente, prestamos atenção aos sinais de desglobalização. Aliás, um dos efeitos da rivalidade sino-americana, tal como ela foi teorizada pelos americanos, consiste em fazer a China recuar para enfraquecê-la e encontra um certo eco em parte da liderança chinesa que considera efetivamente que a China se ocidentalizou muito e depende muito do Ocidente para a sobrevivência de seu regime político. Se você olhar a realidade, a China continua aumentando sua presença mundial. Pessoalmente, acredito que qualquer que seja a ameaça atribuída à China, uma China desglobalizada é uma China mais perigosa. Daí porque sou contra uma estratégia de desglobalização da China.
Pode-se dizer que é da atitude da China que dependerão as consequências geopolíticas globais da guerra na Ucrânia?
Lamy: Sim. No momento a China e a Rússia têm uma aliança narrativa. Pequim e Moscou não têm uma aliança militar e não têm realmente uma aliança econômica visto a extraordinária desproporção entre as duas economias, pois a economia russa é menor que a economia italiana. No momento, a China utiliza sua aliança narrativa para ganhar voz no resto do mundo, o que aliás anda bem. Poucos países [nas Nações Unidas] votaram para condenar a agressão da Rússia, e a China e Índia e muitos outros se abstiveram. É preciso que o Ocidente compreenda que essa ideia que circula em Washington, de que o resto do mundo está conosco contra Putin, é uma ideia inexata. E a China utiliza essa situação como uma revanche contra o Ocidente. A China defende a China.
Ou seja, a China não tem interesse em implodir a ordem mundial…
Lamy: Não, não… Não creio de jeito nenhum que a China irá além da aliança narrativa com a Rússia.
E a Rússia isolada politicamente e economicamente, a que ponto ela é perigosa?
Lamy: Para mim, a Rússia é um país europeu. A arte, literatura, escultura, ciência russas para mim fazem parte da civilização europeia. Acontece que a Rússia tem uma vocação asiática e europeia. A civilização russa, na sua tradição, voltará ao âmbito europeu. Reconheço que no momento o argumento de Putin consiste em afirmar a superioridade da civilização russa sobre a civilização ocidental que ele vê em via de decomposição. A prazo, colocar a Rússia nos braços da China não servirá a ninguém. A Rússia é um país cujas tradições políticas são brutais. E desse ponto de vista, é um país do passado, não um país do futuro. Mesmo se a brutalidade na política tenha aumentado nos últimos tempos, e mesmo se a democracia, as liberdades públicas sejam desrespeitadas, estes ainda são os valores do futuro.
Qualquer que seja a ameaça atribuída à China, uma China desglobalizada é uma China mais perigosa”
O fato é que, além de fraturas na ordem internacional, há as fraturas internas. A eleição presidencial na França, com o crescimento da extrema-direita, parece mostrar isso, não?
Lamy: Não somos [na França] um exemplo isolado. Tivemos isso nos EUA, no Brasil, na Turquia, nas Filipinas. Na Europa houve avanço, mas foi contido. Na França, quem não votou por Emmanuel Macron [o presidente reeleito] não significa que é extrema-direita. Um sistema presidencial com dois turnos forçosamente polariza. É verdade que a polarização do sistema político é hoje mais forte do que era há 20 ou 30 anos. E há várias razões para isso, incluindo as redes sociais.
O senhor parece mais otimista sobre a transformação da União Europeia. A UE se tornará uma verdadeira potência após essa guerra?
Lamy: O que eu tenho dito é que [a guerra] é um teste do qual a União Europeia sairá enfraquecida ou fortalecida. Enfraquecida, ou seja, contaminada, mergulhada na potência americana dominante que alinha força econômica, tecnológica, militar. A UE alia a economia, um pouco a tecnologia e quase nada de poder militar. Uma Europa reamericanizada é uma Europa que terá dificuldade de se integrar no plano político. Basta ver o período de Donald Trump, que aliás pode voltar em dois anos ao poder. Já uma Europa que ganha em autonomia estratégica, em soberania, como fez em crises precedentes, na reação à covid-19, com um plano de endividamento comum, o que era improvável anos antes, tudo isso reforçou a Europa. Não sei como as coisas vão acabar. O que vejo pelo momento é que no apoio à Ucrânia, houve uma demora [da Europa] para se decidir contra a importação do petróleo e do carvão russo. É verdade que países como a Polônia, na primeira linha desse conflito, veem sua segurança hoje mais do lado dos EUA e da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte] do que do lado da União Europeia. A conclusão militar dessa invasão russa está longe de ser clara, mesmo se os russos não vão engolir a Ucrânia, talvez uma parte da Ucrânia.
Nessa reconfiguração geopolítica, vemos por exemplo o ativismo diplomático do Japão, que tenta convencer países asiáticos que adotarem atitude de neutralidade em relação à Rússia. O que um país como o Brasil pode esperar nesse cenário?
Lamy: Creio que a Europa não deve considerar que países que não votaram para condenar a invasão russa são inimigos. Há países africanos, como África do Sul, que consideram que os russos os ajudaram no momento do apartheid. Não se deve fazer o jogo do Ocidente contra o Oriente, dizer que se o Ocidente ganha o resto do mundo perde. Isso é perigoso. Um país como o Brasil tem tamanho suficiente para decidir suas próprias parcerias geoeconômicas ou políticas, o que não é o caso de países menores com poucos meios.
A União Europeia fala em resiliência de cadeias de abastecimento, autonomia estratégica, mas a resistência continua para assinatura do acordo com o Mercosul. Isso poderia mudar após a eleição presidencial de outubro no Brasil?
Lamy: Depende dos engajamentos que o Brasil assumir em questão de desmatamento.
Qualquer que seja o governo?
Lamy: Bom, sabemos que o governo Bolsonaro não tem compromisso em lutar contra o desmatamento. É o tema número um para os europeus. Os europeus não aceitarão um acordo sem engajamento complementar do Brasil de garantia contra o desmatamento, que se acentuou no governo Bolsonaro.
No cenário geopolítico, o que o Brasil precisaria fazer para aproveitar as oportunidades atuais
Lamy: O Brasil é um país cuja economia se reconcentrou em matérias-primas há muito tempo, basta ver a proporção do que o Brasil exporta em commodities. O Brasil se beneficiou sempre das altas de preços de matérias-primas. E vai bem quando as matérias-primas estão em alta. No médio e longo prazo acho que o país deveria fabricar mais com valor agregado do que surfar em momentos de especulação com as commodities. É preciso que a economia brasileira diversifique sua produção nacional, para assegurar no longo prazo valor agregado. O verdadeiro valor é que vai criar emprego, usando a base natural de que dispõe.
Quanto às empresas, quais as consequências práticas com a atual situação geopolítica?
Lamy: O que muda a toda velocidade nas empresas é o ESG, a responsabilidade ambiental, social e de governança. E a geopolítica só vem em quarto lugar. O que aconteceu com a Rússia? Não foram os governos que pediram para as empresas abandonarem o país. Foram as empresas mesmo que decidiram. Cerca de 400 multinacionais decidiram parar ou congelar as operações na Rússia, porque os consumidores, os assalariados e a opinião pública disseram que elas não podiam continuar a financiar o lado russo na guerra na Ucrânia.
Até que ponto prioridades como a urgência climática podem ser degradadas, por exemplo com os governos concentrando mais recursos em armamentos?
Lamy: Há um risco, mas a urgência climática aumenta todo dia. E mais rapidamente que a urgência militar. Sim, a urgência militar aumenta, mas se você tem 50 armas e eu 50, e aumentamos para 65, isso significa um novo equilíbrio, mas não fazer a guerra. Em geral, os militares são gente prudente, os políticos são imprudentes. Fui oficial da Marinha na minha juventude, sei algo sobre isso. Se fossem os militares que decidissem sobre a guerra, teríamos menos conflito. Mas a urgência climática vai se manifestar mais e mais forte.
Por Assis Moreira — De Genebra
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