“Impressionante: as pessoas têm medo de vacina, não da covid”, diz presidente da Pfizer no Brasil
A espanhola Marta Díez é a primeira mulher à frente da empresa no país

Era de se esperar que a espanhola Marta Díez ficasse apreensiva ao se candidatar à vaga de presidente da Pfizer no Brasil, maior mercado da América Latina e décimo do mundo. “Que nada. Eu tinha muita confiança”, responde a executiva, sem titubear. E, como se surpreendida pela própria firmeza e espontaneidade, cai na risada.
Aos 45 anos, dois no comando da farmacêutica no Chile, a executiva se sentia pronta para novos desafios. “Foi uma experiência interessante, mas o país já estava ficando pequeno para mim”, arremata, de pé na entrada do restaurante, envolta em um bolero, a alternar o peso do corpo entre os pés em saltos altos e finos e esfregar as mãos para se aquecer.
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Primeira mulher à frente da Pfizer no Brasil, Díez já havia ocupado outros postos de liderança que a levaram a viver em diferentes países. Nas jornadas, diz, deparou-se com dois tipos de pessoas, aquelas que vivem a se queixar do que deixaram para trás e as que se abrem para o novo. “Em casa somos do segundo time, bem flexíveis” – qualidade, aliás, colocada à prova neste encontro.
Embora a reserva no Vicolo Nostro tenha sido feita incluindo a autorização para fotos, somos surpreendidos com a notícia de que não podemos registrar o encontro para não perturbar os outros clientes. O imenso salão está praticamente desocupado e as salas privativas, vazias. Mesmo assim, o maître permanece irredutível. Enquanto tentamos encontrar uma solução para o impasse, a executiva liga para a Pfizer e pede para prepararem uma sala de almoço.
Escolhemos os pratos, uma de suas assessoras fica no restaurante para aguardar o preparo da comida enquanto seguimos com seu motorista para a empresa. “Ao menos assim você conhece o lugar em que trabalho”, diz a executiva, sentada no banco de trás do carro e já de olho no que pode vislumbrar à frente.
Foram dois meses, prossegue, com o automóvel em movimento, entre se candidatar e ser alçada ao posto no Brasil. Nesse ínterim, começou a aprender português e a sondar escolas para as duas filhas, hoje com 11 e 9 anos. A mais velha colou o ouvido na porta, matou a charada e quis saber quando deveriam fazer as malas. Agora deram de rodar o globo para escolher a próxima parada. “Como se a vida funcionasse assim”, diverte-se. É que, para elas, diz, mudar de país com frequência virou algo natural. Fluentes em quatro línguas, costumam corrigir o sotaque castelhano da mãe.
A nomeação de Díez saiu em fevereiro de 2021, mas por causa da pandemia ela despachou do Chile durante os primeiros meses. A vinda de mala e cuia para o Brasil só ocorreu em agosto.
Desde então, já foi com a família para lugares como a Amazônia, Foz do Iguaçu e Bonito, mas seu destino primordial continua sendo Brasília.
A gente fala das milhares de mortes por dia, hospitais lotados, como se fosse num passado remoto, mas um ano e meio é pouquíssimo tempo”
Dentre os assuntos tratados com o Ministério da Saúde estão as vacinas contra a covid para crianças com menos de 5 anos – hoje o grupo mais suscetível à hospitalização pela doença, excetuando a população acima de 60 anos – e o antiviral Paxlovid. O medicamento, já em uso em 50 países, é o mais potente para combater a doença em estágio inicial, reduzindo o risco de hospitalização em 85%. Detalhes de preços permanecem confidenciais. A executiva afirma que eles variam de acordo com a renda de cada país, mesmo critério usado para as vacinas.
O apoio do marido, diz, é essencial para que possa viajar a Brasília praticamente toda semana e mudar de país de quando em quando. Francês e formado em engenharia como Díez, Karim abriu mão da carreira para ficar na retaguarda. Sem ele, reconhece, teria sido insano equilibrar a casa, as crias e o trabalho, ainda mais com todo mundo cumprindo agenda de forma virtual. Mesmo assim, impossível evitar percalços.
Um dia, enquanto ela se reunia com as maiores autoridades chilenas para negociar o imunizante, as filhas encasquetaram de se digladiar. Como o marido tinha ido ao supermercado, coube a ela saltar da cadeira, apartar a briga e só então retornar ao computador, esbaforida, e ver na tela os engravatados na mesma posição com cara de paisagem. “São muito formais, era como se nada tivesse acontecido.”
A vacina desenvolvida pela Pfizer com a BioNTech contra a covid foi a primeira a ser validada pela Organização Mundial da Saúde. No primeiro ano da pandemia, a farmacêutica estendeu as negociações do Chile para outros países da América Latina, como Equador, Peru e Bolívia. “Obviamente todos tinham muita pressa de conseguir a vacina, muita gente morrendo, hospitais lotados.”
Enquanto isso, o governo brasileiro dava de ombros às tentativas de tratativas. Alguns países, contemporiza, quando trago o assunto à baila, precisaram mudar a legislação e criar normas provisórias para aprovar o uso emergencial das vacinas. Nos Estados Unidos e na Europa não foi necessário. “Seguir a lei em compras públicas exige uma série de critérios, acho que isso atrasou a negociação no Brasil.”
No entanto, mesmo após a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a Anvisa, autorizar o uso emergencial em 2020, o Planalto continuou de braços cruzados. Entre a primeira oferta da farmacêutica para o governo e a assinatura do contrato passaram-se sete meses.
A executiva assumiu o posto no Brasil em um momento conturbado, com a média de mil mortes diárias e políticos se movimentando para criar a CPI da Covid. Dentre as conclusões da comissão, a recusa e atraso deliberado do governo Bolsonaro na aquisição de vacinas, como os 81 e-mails da Pfizer ignorados pelo mandatário e sua equipe. Díez foi convocada a depor na CPI, mas, como não participou das tratativas, foi dispensada. Carlos Murillo, seu antecessor e hoje gerente-geral da Pfizer na América Latina, compareceu.
“Carlos deixou muito claro que tinha enviado as propostas ao governo brasileiro. Do ponto de vista da empresa, todos os prazos foram cumpridos”, assegura, enquanto o carro corre em zigue-zague, como nosso assunto, que desemboca das negociações macro para vias mais miúdas, também fundamentais para que a executiva chegasse até aqui.
São muitas perguntas ainda. Quantas doses de vacinas serão necessárias? Quanto tempo dura a imunidade que elas oferecem?”
Mudar constantemente requer acordo entre as partes, o que demanda lábia, paciência e barganha, como prometer aulas de hipismo para as filhas. “Essa é a vida que nós temos. Antes bastava conversar com meu marido, agora tem também as meninas. Às vezes elas esperneiam, mas é sempre um processo de negociação.”
Díez conheceu Karim quando saiu de Barcelona, sua cidade natal, para estudar em Paris. Com mestrado em imagens médicas na faculdade Télécom Paris e MBA pela IESE Business School, ela foi contratada para trabalhar em Madri. Um de seus clientes no Boston Consulting Group era a Pfizer, que lhe ofereceu um cargo em 2010, justamente quando descobriu a gravidez da primeira filha. O receio de ser preterida com a notícia de que seria mãe não se concretizou: “Eles me deram os parabéns e disseram que não tinha o menor problema”.
Quando a menina fez um ano, Díez foi designada para a operação de Dubai. A ideia era que trabalhasse de Nova York, mas com o fuso horário tão díspar, convenceu seu chefe de que o melhor seria fincar base nos Emirados Árabes. Conviver com uma comunidade grande e diversa de expatriados, diz, ampliou seu repertório.
Dois anos depois, já habituada à burca, recebeu proposta de outra companhia para trabalhar em Munique, na Alemanha. O casal avaliou que a proposta era irrecusável e Karim concordou em abrir mão da atividade profissional para se dedicar às meninas e aprender alemão, língua, aliás, diz Díez, que o marido domina muito mais do que ela.
No momento em que compraram uma casa em Munique e Karim estava prestes a conseguir uma recolocação no mercado, a Pfizer procurou a antiga funcionária e acenou com um posto no Chile. “Foi aí que meu marido decidiu que o melhor era parar de trabalhar mesmo. É difícil construir uma carreira quando estamos sempre mudando”, diz, enquanto solta o cinto de segurança e aguarda o motorista estacionar na matriz da empresa, na Chácara Santo Antônio.
Após as burocracias de crachás, catracas e elevador, Díez me leva para um pequeno tour. “Aqui é o open space”, diz, apontando uma área imensa, toda envidraçada e dando alô para os presentes, poucos, por sinal. Como efeito da pandemia, a companhia acabou por incorporar um modelo flexível de trabalho, todos os funcionários – com exceção dos que ficam na fábrica – só precisam estar de corpo presente quando a atividade de fato demanda. No caso da executiva, dois dias da semana são sagrados, terças, para comandar as reuniões de equipe, e quintas, para o café da manhã, momento reservado para compartilhar comida “e simplesmente conversar”, explica.
Recentemente uma funcionária bem jovem fez uma confidência, estava com pavor de retornar à empresa e perguntou se Díez tinha sentido o mesmo. “Incrível o número de pessoas que não querem mais sair de casa, amigos meus com pânico, medo crônico, depressão. Companhias fecharam e deixaram muita gente sem emprego”, lamenta, guiando-me pelo corredor até a sala onde preparam a mesa para nosso almoço.
Sentamos, enfim? Não. Como o local tem pouca luz para as fotos, decidimos ocupar uma mesa ao ar livre, com o sol para nos aquecer e mais seguro para tirar as máscaras. Enquanto ajuda a carregar pratos e talheres para o novo espaço, Díez observa que as vacinas foram desenvolvidas com tal rapidez que as pessoas se esquecem de como era antes. “A gente fala das milhares de mortes por dia, hospitais lotados, sistema de saúde colapsando, como se fosse num passado remoto, mas um ano e meio é pouquíssimo tempo.”
Pfizer e BioNTech estão trabalhando agora numa versão adaptada à ômicron e suas sublinhagens. “Não sabemos ainda se vão vir outras mutações, esperamos que não, mas é sempre uma fonte de preocupação. Mas se vier, a tecnologia do RNA mensageiro é capaz de desenvolver e produzir uma nova vacina com rapidez.”
Análise mais recente conduzida por cientistas do Reino Unido estima que apenas no primeiro ano de pandemia as vacinas salvaram 20 milhões de vidas em todo o planeta, sendo 1 milhão só no Brasil. “A situação agora é bem diferente, não dá tanto medo”, diz a executiva, ainda incólume ao vírus e batendo três vezes na madeira. “Tomei as três doses para a minha idade e se eu pegar terei uma doença leve”, arremata, acomodando-se à mesa.
Leva a mão sobre a testa, feito uma viseira para proteger os olhos verdes da claridade, e diz que agora é urgente imunizar as crianças. A taxa de vacinação de crianças de 5 a 11 anos é de apenas 37% no Brasil. A Pfizer encaminhou a documentação e aguarda aprovação da Anvisa para as vacinas destinadas a crianças de 6 meses a 5 anos. Desde o início da pandemia, o vírus matou duas crianças desta faixa etária por dia no Brasil.
Chega a comida. Antes que a gente se sirva, a fotógrafa pede para fazer um retrato dela com o prato. Díez, que estava prestes a se servir, larga tudo e coloca as mãos para o alto. “Calma, não toco em nada”, brinca, antes de, enfim, dar a primeira garfada no salmão com risoto de brie. Como o restaurante esqueceu de mandar as bebidas, dentre elas o refrigerante de Díez, vamos todas de água.
Outra preocupação sua é com o impacto da pandemia nas campanhas de prevenção e imunização de outras doenças que ficaram em segundo plano na crise. Caso nada seja feito, alerta, corremos o risco da volta de casos de meningite, sarampo e poliomielite, que podem causar sequelas irreversíveis. A vacina é vítima do próprio sucesso. Como é eficaz, as pessoas esquecem que um dia a doença existiu.
Um estudo recente da Pfizer revela que 16% dos responsáveis não pretendem vacinar seus filhos contra covid; aqueles que tomaram doses de reforço estão mais dispostos a vacinar as crianças pelas quais são responsáveis; e a propensão a vacinar a prole cai à medida que a escolaridade e renda familiar aumentam.
“Impressionante. As pessoas têm medo de vacina e não da doença”, lamenta a executiva. Qual seria a melhor estratégia para convencê-las? Cristiane Blanch, diretora de comunicação, sugere repetir o que escutou de uma imunologista recentemente. “‘De fato’, disse a médica, ‘as vacinas são perigosíssimas, causam inclusive adultos.’”
Outro dado da pesquisa, acrescenta a executiva, foi o aumento na pandemia da propagação de fake news. Para combatê-las, diz, a multinacional tem usado todos os canais possíveis. “Nossa estratégia é comunicar, seja em entrevistas, redes sociais, especialista contratados para monitorar, chat box, WhatsApp, carro de som em comunidades carentes, tudo para contrastar as informações falsas com as corretas.”
Depois de uma pausa para mais uma garfada na comida que esfria no prato, Díez diz que desde 2019 o foco da empresa passou a ser inovação. “Estamos desinvestindo numa parte do portfólio, de vitaminas e também de medicamentos que já perderam a patente. Antes a gente era conhecido como a companhia do Viagra, agora somos a companhia da vacina; prefiro assim”, diz, rindo.
Os recursos da farmacêutica são direcionados para seis áreas terapêuticas: vacinas, inflamação e imunologia, oncologia, hospitalar (medicamentos que ajudam a combater a resistência bacteriana), medicina interna (cardiologia, saúde mental, saúde da mulher e oftalmologia) e doenças raras.
A maior parte das doenças raras são de origem genética e existem há muito tempo, mas medicamentos para combatê-las são mais recentes. Uma vez incorporados ao Sistema Único de Saúde (SUS), eles são disponibilizados para todos, mas, em virtude do alto preço e do impacto econômico, isso é difícil de acontecer. Para ter acesso à terapia para doença rara, as famílias recorrem à vaquinha e à justiça. Como a indústria farmacêutica pode colaborar para resolver este impasse?
“A judicialização não é o melhor caminho. Temos que nos unir com o governo para conseguir sustentar o sistema e ao mesmo tempo garantir que as pessoas possam se beneficiar”, diz a executiva. “É preciso encontrar formas de evoluir. O SUS tem capilaridade e cobertura universal, e é supernecessário, como ficou claro na pandemia. Mas comparado ao sistema europeu, é relativamente lento para incorporar terapias novas, e nem estou falando das mais modernas. O tratamento para o câncer metastático, por exemplo, nós lançamos há quase dez anos, mas só agora ele está disponível no SUS.”
Para justificar a aquisição de novas terapias, a indústria farmacêutica negocia com os governos apresentando estudos de impacto econômico. “O custo do tratamento vai ser X, mas o custo de um paciente que entra no hospital vai ser muito mais alto. É preciso olhar o custo que o medicamento evita.” Esta conta, diz, tem sido feita para negociar o antiviral assim como as vacinas. Segundo os estudos da Pfizer, cada R$ 1 que foi gasto em imunizantes contra a covid gerou um impacto positivo de R$ 9 no PIB.
A Pfizer aumentou os investimentos globais em pesquisa e desenvolvimento de US$ 8,9 bilhões em 2020 para US$ 10,5 bilhões em 2021. Em 2020, o investimento inicial para a vacina contra covid-19 foi de mais de US$ 2 bilhões e, desde então, tornou-se recorrente e crescente. O custo alto para inovação, diz, justifica o prazo de 15 a 20 anos de vigência das patentes. “A proteção é necessária inclusive para existirem os genéricos; se matarmos a inovação, não teremos tratamento algum.”
Por outro lado, as receitas operacionais da Pfizer praticamente dobraram no ano passado. Ao ser questionada sobre o papel da indústria farmacêutica na saúde mundial, a executiva diz que está em discussão abrir mão da patente de todo o portfólio da empresa para os países de baixa renda.
Findo o almoço, talheres sobre o prato, máscaras novamente no rosto. É possível prever quando a pandemia vai acabar? “São muitas perguntas ainda. Quantas doses de vacinas serão necessárias? Quanto tempo dura a imunidade que elas oferecem? Uma vacina específica para a ômicron será melhor que a original? De fato ela será necessária? As respostas são incompletas no momento, é preciso aguardar.”
E o tempo que Díez vai permanecer no Brasil? Se seguir o padrão de levantar acampamento a cada dois anos, o prazo expira em janeiro do ano que vem. Confere a previsão? “Espero ficar ainda bastante tempo. Só vou embora quando vocês não me aguentarem mais.”