Cruzeiro: SAF no nome, associação na gestão

Terminei a coluna anterior, que tratava dos números de Flamengo e Palmeiras em 2024 com a seguinte frase: ‘Dinheiro não aceita desaforo’. Trata-se de uma espécie de mantra associado à necessidade de controlarmos gastos e evitarmos os desperdícios.
Eis que o atual dono do Cruzeiro SAF, Pedro Lourenço, concedeu uma entrevista interessante ao Tempo Sports, e compartilhada em matéria pelo site ge.com.
A entrevista traz uma série de clichês da gestão do futebol, que cabem não apenas ao Brasil, pois se repetem em vários clubes e ligas pelo mundo. Nesta coluna vamos analisar o cenário colocado pelo acionista do clube mineiro.
Cruzeiro: erros de contratação
O controlador do Cruzeiro SAF começa falando que o clube errou muito nas contratações e que teria falado com o CEO, Alexandro Mattos, que precisam errar menos, ou mesmo não errar.
Pois é, há algumas semanas escrevi que o futebol é uma atividade de minimização de erros. Desde a contratação de atletas, treinadores, desenvolvimento da ideia de jogo. E chegando até as tomadas de decisões de treinadores e atletas no momento da partida.
Ganha-se e perde-se um jogo por uma decisão errada. Impossível não errar, mas fundamental trabalhar para minimizar os erros.
Ao escolher como CEO um profissional cuja carreira é marcada por negociações de atletas em profusão, aumenta-se a chance de erro.
Quem disse que o melhor é contratar nomes e não funções? E daí tem ingerência sobre treinador, potenciais escolhas incompatíveis entre equipe técnica e atletas. No final das contas, erros ocorrerão, mas começam pela escolha do perfil do profissional que vai gerir o clube.
Futebol como péssimo negócio
Pedro Lourenço reclama que o futebol é um péssimo negócio porque os atletas ganham muito, os agentes ganham muito e o clube só perde dinheiro. Pois é, não deixa de ser verdade quando o clube é gerido de maneira amadora.
Trata-se de um comportamento comum e que vem da estrutura associativa. Quando se faz futebol via associação, o comportamento do dirigente é sempre o mesmo: gasta-se sem controle, sem discutir para quem vai o dinheiro, quem é comissionado, se o valor de contratação está aderente ao que o clube pode pagar. Gasta-se e pronto. Afinal, quem pode conquistar é o presidente atual, mas quem vai pagar a conta é o próximo.
Lourenço só ignorou que essa lógica não funciona numa SAF, cujo dinheiro tem dono. Querer competir com clubes que faturam mais de R$ 1 bilhão, mas faturando R$ 400 milhões não será sustentável se a forma de o fazer for apenas gastando.
A SAF que Ronaldo Fenômeno vendeu para um dos acionistas dos Supermercados BH era uma empresa, com governança, regras, controles. Desde a troca de controlador a empresa perdeu praticamente todos os executivos que transformaram o Cruzeiro desde a chegada de Ronaldo.
Não parece por acaso.
A história financeira do futebol mostra isso, e os números do coirmão Atlético-MG não mostram nada diferente. Logo, repetir na SAF o comportamento associativo é mais um erro básico de gestão.
Elogiar em público, criticar no privado
Uma regra básica da boa gestão de pessoas. No futebol é ainda pior, porque dizer que houve contratações equivocadas apenas afeta o elenco que está prestando serviço em campo. Quem foi mal contratado? Quem não performa? Qual o impacto sobre o treinador? Esta escalando quem não deve?
Além disso, falar mal do elenco em público desvaloriza o seu maior ativo, que são os direitos dos atletas.
Comparar o futebol com outros setores
Cada setor é um setor. Cada um tem suas margens, características, riscos e fortalezas. Comparar o varejo ao futebol, como fez Pedro Lourenço, é um equívoco. O Flamengo, por exemplo, tem margens bastante altas, mesmo sendo uma associação que certamente opera de maneira sub-ótima, com ineficiências e atividades deficitárias. Imagine sob uma visão exclusivamente corporativa.
No varejo há que estar atento às margens estreitas, à gestão do capital de giro, dos prazos e também é possível errar, especialmente na estratégia, seja de diversificação, de expansão, entre outras. Logo, o problema não é o setor, mas saber operar o setor. Repetir numa SAF o modelo associativo de gestão não levará o negócio ao patamar de estabilidade desejado.

Como resumimos isso?
Pois bem, o futebol é uma indústria complexa. Trata-se de um negócio em que deve-se minimizar erros, e isso leva a um planejamento de longo prazo. A estratégia jamais pode ser de retorno rápido. Se vir no curto prazo, foi um acaso e possivelmente às custas de sacrificar a estrutura financeira da SAF.
O negócio precisa de gente qualificada e que entenda o setor, mas temos um problema grave que é a falta de profissionais que entendam o futebol numa ótica corporativa, que requer controle de gastos e investimentos, métricas de monitoramento, respeito à governança e ainda seja capaz de saber fazer futebol.
Os anos associativos inundaram a indústria de profissionais que sabem operar o modelo associativo, apenas. Não adianta fazer curso da UEFA, da FIFA, do Barcelona se o comportamento é associativo.
Numa SAF é fundamental definir o modelo de negócios e sua real capacidade de competitividade. Só o futebol associativo e descontrolado é capaz de transformar clubes que faturam 100 em competidores que gastam 500, pelo simples fato de que ninguém cobra a conta depois. Numa SAF a conta é do dono, e todos precisam saber qual é a realidade. Porque dinheiro é finito.
As declarações de Pedro Lourenço jogam luz em algo que venho falando há algum tempo: não é fácil fazer futebol, ainda mais se quisermos manter velhas e corroídas práticas de gestão. SAF não será solução se não trouxer junto uma mentalidade diferente na gestão.
Leia a seguir