Bolsa deve sofrer redução de fluxo externo

Depois de receber mais de R$ 73 bilhões em recursos estrangeiros até o último dia 16 de março, valor que já supera o recorde anual da série histórica iniciada em 1994, o segmento secundário da B3 (ações já listadas) pode sentir, segundo gestores ouvidos pelo Valor, um abrandamento deste fluxo nos próximos meses, conforme o cenário global de ações passa por ajustes.
Em 2022, o Ibovespa acumula ganhos de 9,8%, enquanto o S&P 500 perde 6,3%, o Nasdaq devolve 11,6% e o europeu Stoxx 600 cede 6,8%. O desempenho positivo, no entanto, é fortemente concentrado em empresas com maior peso no índice local e nos setores de mineração e siderurgia, óleo e gás e financeiro, os favoritos do investidor global por sua liquidez.

Antes do início da guerra entre Rússia e Ucrânia, em fevereiro, agentes enxergavam um possível transbordamento dos recursos internacionais para ativos mais ligados à economia local, ao esperarem um abrandamento da inflação e uma reversão da política monetária apertada após a eleição. Agora, esse cenário já parece distante.
“Os bancos centrais da América Latina vinham se preparando há meses para este ciclo de aperto monetário, tentando se manter à frente da curva, mas o impacto da guerra é essencialmente inflacionário, com alta nos preços de alimentação e energia. Não é catastrófico, mas torna o ambiente mais desafiador e atrasa expectativas de reversão no cenário”, diz Alejo Czerwonko, chefe de investimentos para América Latina e emergentes do banco UBS, que tem recomendação “neutra” para os ativos do país.
No Brasil, o UBS BB acreditava que a Selic poderia chegar a 13,75%, mas, depois da decisão do Copom da última quarta-feira, que elevou o juro básico para 11,75% e sinalizou mais uma alta de 1 ponto percentual em março, o banco revisou a projeção para o juro básico em 12,75% no fim do ciclo. A diferença é que os profissionais da casa passaram a trabalhar com a tese de que a taxa vai se manter nesse nível até março de 2023.
Com isso, na visão de Czerwonko, o ambiente fica menos propício para a recuperação dos ativos conectados com o cenário doméstico. O profissional cita, ainda, a decisão de política monetária do Fed na semana passada como um divisor de águas para mercados acionários.
“A comunicação do Fed veio dura, indicando uma série de aumentos nos juros e mostrando preocupação com o cenário inflacionário, o que deve se traduzir em menos liquidez e menos recursos para emergentes. Além disso, investidores saíram de setores da bolsa americana, como tecnologia, para se proteger das altas nos juros e, como este processo se mostra mais precificado, podemos ter uma diminuição dessa rotação”, afirma.
Nessa linha, Marko Kolanovic e Bram Kaplan, do J.P. Morgan, afirmam, em relatório, que não acreditam que os ativos de “growth” (que têm seu valor no futuro) ainda têm muito para corrigir. “Os mercados antecipam esses pontos de virada, então acreditamos que é hora de começar a adicionar risco em muitas áreas que passaram por correção demasiado forte”, defendem.
Czerwonko, do UBS, pontua, ainda, que problemas históricos do Brasil, como a falta de um ritmo de crescimento compatível com outros emergentes, ajudam a explicar uma certa perda de protagonismo do mercado local nos últimos anos e a sua utilização apenas como um “refúgio tático” durante os ciclos de commodities.
“Além de mercados como China, Índia e sudeste asiático apresentarem números de atividade melhores, a questão eleitoral, que perdeu prioridade nos últimos meses, deve voltar ao longo de 2022”, afirma o profissional.
Mauro Oliveira, chefe de ações para a América Latina do Credit Suisse, afirma que os dois bancos centrais trouxeram comunicados duros, o que pode gerar impactos para os ativos dependentes da atividade local. Ele, porém, ressalta que o fluxo deve continuar a ocorrer, em menor intensidade, com a ajuda das commodities.
“É provável que os recursos comecem a vir num ritmo menos expressivo, cabendo realizações em dias de insatisfação ou até mesmo a saída de alguns papéis. Há setores, como o de construção civil, em que é muito difícil aportar agora, por conta de resultados ruins e inflação de custos, de mão de obra. Mas a bolsa brasileira é uma bolsa de commodities, não tem como fugir disso, e este segmento deve seguir atraindo dinheiro ao longo do ano”, afirma Oliveira.
Alexandre Reitz, chefe de ações do Julius Baer Family Office, concorda. Ele aponta que, na comunicação com os clientes da casa, as ações locais passaram a carregar mais risco do que tinham no início do ano, devido aos fatores adicionados nas últimas semanas.
“Se, no começo de 2022, já dava para vislumbrar uma recuperação dos ativos domésticos, isso foi empurrado um pouco mais para a frente. Mas a visão construtiva com commodities permanece. O nível de rentabilidade do ano passado tinha sido elevado e pedia correção, mas a guerra mudou esse cenário”, afirma Reitz, ao pontuar, ainda, que tem começado a procurar posições em ativos domésticos resilientes, como o setor de vestuário.
O Credit Suisse estima que o petróleo tipo Brent, referência para a Petrobras, deve se manter no nível de US$ 100 por barril até o fim de 2022, devido a problemas persistentes de oferta. E que o minério de ferro tem força para ficar acima dos US$ 120 até o segundo semestre, mesmo que as discussões de controle na produção de aço se mantenham na China.
Sobre o gigante asiático, inclusive, Oliveira e Czerwonko viram com bons olhos as falas recentes do vice-primeiro-ministro Liu He, ao afirmar que o governo voltará a estimular a economia do país e trabalhará para organizar o seu mercado acionário. Os profissionais observam que as mudanças podem ter impacto, além das commodities, nos ativos chineses, que operam com forte nível de desconto em alguns setores, até mesmo em relação ao mercado brasileiro.
Já em relação ao real, que também carrega firme valorização anual, as três casas enxergam resiliência nos patamares atuais, dado o patamar dos juros locais e a alta nos preços das commodities. Oliveira, do Credit Suisse, avalia que pode até haver uma correção, em caso de riscos pontuais, para o nível de R$ 5,25 a R$ 5,30, mas ressalta que os estrangeiros logo voltariam a montar posição na moeda local.
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