Autismo: o que Elon Musk, Anthony Hopkins e Greta Thunberg têm em comum e vai além do óbvio

Os cientistas ainda lutam para entender o processo que leva ao autismo, mas há avanços significativos para celebrar

Elon Musk, CEO da Tesla - Foto: Mike Blake/Reuters
Elon Musk, CEO da Tesla - Foto: Mike Blake/Reuters

O que têm em comum o bilionário, dono de uma fortuna de US$ 250 bilhões, que acaba de adquirir o Twitter; a garota que decidiu não frequentar mais a escola para se tornar uma das ativistas ambientais mais influentes no cenário mundial; e o ator de cinema obsessivo, ganhador de dois Oscars, conhecido por interpretar personagens como o serial killer canibal e o papa Bento XVI?

Pode-se considerar que Elon Musk, Greta Thunberg e Anthony Hopkins, os três prodígios acima, se caracterizam por serem pessoas nada convencionais. Mas o mais certo é dizer que compartilham um desenvolvimento neurológico em alguns aspectos diferente da maioria, tendo sido diagnosticados com Asperger, uma condição que, desde 2013, com a quinta edição do DSM (o manual diagnóstico- estatístico da Associação Americana de Psiquiatria), faz parte do transtorno do espectro autista (TEA).

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Segundo o DSM-5, o Asperger se enquadra no autismo, que não é um transtorno único, mas um conjunto de comportamentos que podem variar em intensidade e em características, a depender de cada indivíduo. Em geral, essas características se manifestam em dificuldades no convívio social, comunicação e comportamentos repetitivos e restritos e hipersensibilidade sensorial. Como disse sobre o seu diagnóstico o bilionário Elon Musk, convidado para fazer a abertura da primeira transmissão ao vivo no YouTube do “Saturday Night Live”, no ano passado: “Reinventei os carros elétricos e estou enviando pessoas a Marte em um foguete. Você achou que eu seria um cara normal e tranquilo?”.

A admissão pública dessa condição por pessoas famosas, as séries e filmes com personagens que se autoassumiram pertencentes ao espectro (“The Big Bang Theory”, “The Good Doctor”) e o maior conhecimento clínico sobre o autismo por parte de médicos e psicólogos levaram a população a supor que houve um aumento de casos da síndrome.

“Nos últimos cinco anos todo mundo parece conhecer alguém ou sabe de uma história relacionada a alguém com autismo”, comenta a jornalista Renata Simões, de 45 anos, diagnosticada com autismo altamente funcional há dez anos. “Houve uma mudança. No passado, o autismo estava vinculado à imagem do personagem do filme ‘Rain Man’, nunca a alguém um pouco mais esquisito e específico. Muitas pessoas cresceram e enfrentaram sérias dificuldades, sem saber de sua condição, e só tiveram acesso ao diagnóstico na idade adulta, como foi o meu caso.”

A mudança nos critérios de TEA, refletida na classificação internacional de doenças (CID-11) que entrou em vigor neste ano, e a movimentação dos próprios autistas e suas famílias no sentido de acabar com a desinformação e inserir essas pessoas na sociedade também podem explicar por que o autismo tem sido mais abordado ultimamente.

Neurodiversidade

Hoje, se fala em neurodiversidade, palavra usada pela primeira vez pela socióloga australiana Judy Singer há cerca de 20 anos, para se referir à enorme variação de composições neurológicas entre os seres humanos como uma maneira de refletir sobre a aceitação da condição dos autistas.

“Quando recebi o diagnóstico do Theo, aos 2 anos, foi um sofrimento enorme”, diz a jornalista Andrea Werner, escritora e fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, rede de apoio emocional, jurídico e material para mães, famílias e pessoas com deficiência de todo o Brasil. Ela é mãe de Theo, hoje com 13 anos, considerado um autista com nível severo que precisa de suporte de vários tipos, pois talvez nunca venha a ser independente.

“Na época, não havia quase nada sobre autismo na internet, ainda não havia redes sociais como hoje. Senti que estava sendo castigada pelo universo. Eu não tinha como encarar a deficiência, a neurodiversidade como parte da diversidade humana.” Mesmo agora, Werner conta que parte daquele sentimento é impossível extirpar. “É a preocupação da mãe com o futuro do filho, não tem jeito.”

Esse sentimento é expresso de maneira comovente pelo também jornalista Luiz Fernando Vianna, no livro “Meu menino vadio: histórias de um garoto autista e seu pai estranho” (Intrínseca, 2017), em que descreve a convivência com o filho Henrique, hoje com 21 anos, diagnosticado com autismo severo. Viana explica que o livro foi escrito em momentos de crise sobre a experiência de ter um filho nessa situação.

“Se eu queria ter um filho autista?”, pergunta no livro. “Não. O que a convivência com ele me proporciona mais: prazer ou angústia? Angústia. Ainda assim, amo meu filho? Mais do que qualquer palavra pode traduzir.” Revendo sua história mais recentemente, ele comentou: “O livro me fez bem, foi importante escrever o que estava sufocado dentro de mim, mas as dificuldades continuam.”

Às vezes, as dificuldades dos autistas trabalham a seu favor. Marina Amaral é uma artista digital de 27 anos, considerada pela revista “Wired” uma das maiores especialistas na colorização de fotos preto e branco. Seu trabalho exige muita pesquisa e bastante atenção a detalhes, para que fotos antigas e desgastadas pelo tempo ganhem cores e vida. Ela é reconhecida internacionalmente, tendo publicado dois livros em parceria com o historiador e apresentador de TV Dan Jones, traduzido para 13 idiomas.

Ela conta que sua profissão começou como um hobby, mas virou obsessão. “Eu me dedicava tanto e de uma forma tão profunda que me esquecia até de fazer tarefas comuns, como comer e dormir. Queria evoluir, estudar, aprender técnicas novas.” Recentemente ela descobriu que a obsessão, chamada de hiperfoco, é um dos sinais do autismo.

“Desde criança, frequentei psicólogos para tratar de minha ansiedade. Na escola tive mutismo seletivo, não falava com ninguém a não ser por bilhetinhos. Foram vários diagnósticos errados até chegar ao que era óbvio”, conta. “Foi difícil encontrar quem entendesse minhas dificuldades. Por ser uma deficiência invisível, os autistas são incompreendidos, julgados. As pessoas não percebem como é difícil para mim entrar numa lanchonete e pedir um sanduíche. Ou, por causa do meu trabalho, dar uma entrevista em outra língua sem me sentir incomodada.”

Apesar de a síndrome ser conhecida desde a década de 1940, os cientistas ainda lutam para entender o processo que leva ao autismo. Sabe-se que os sintomas estão relacionados à formação dos neurônios durante o desenvolvimento do embrião. Os neurônios dos autistas apresentariam um déficit na formação e encaminhamento de sinapses, o que pode mudar a qualidade e a quantidade dessas estruturas do cérebro, gerando uma espécie de “desordem” em áreas de comunicação social e comportamento. Mas isso não ocorre de uma forma única.

“O diagnóstico é um quebra-cabeça de várias pecinhas que precisam ser montadas por muitos profissionais – médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais”, afirma a enfermeira Fernanda Lima, gerente de pesquisa do Pensi, instituto dedicado a difundir conhecimento e realizar pesquisas sobre o tema.

“Hoje já se sabe que existem muitos fatores genéticos e ambientais envolvidos na predisposição ao autismo”, afirma a geneticista Maria Rita Passos Bueno, pesquisadora do Centro de Estudos do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH- CEL) da USP, que já analisou mais de mil famílias com pessoas portadoras da síndrome. “Uma única variante genética é suficiente para causar o quadro clínico, mas na maioria dos casos há um acúmulo de variantes raras ou comuns em múltiplos genes importantes para os processos biológicos e que controlam o neurodesenvolvimento.”

Segundo a pesquisadora, já foram confirmadas cerca de cem variantes genéticas relacionadas ao transtorno e outras mil são estudadas para verificar sua atuação. Mas ainda não se conhece o quanto cada uma contribui para a arquitetura genética do TEA.

Além disso, muitas variantes associadas à síndrome estão relacionadas a outras condições do neurodesenvolvimento, como deficiência intelectual, transtorno de ansiedade, transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) ou transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). “Os testes genéticos podem diagnosticar cerca de 20% dos casos em que as variantes estejam associadas a alto risco de desenvolvimento da síndrome, mas as formas multifatoriais de TEA ainda não são conhecidas”, diz Rita Bueno.

O ideal é que o diagnóstico de autismo e o início do tratamento tenham início por volta dos dois anos de idade. “Quanto mais cedo se identificam os sinais, maiores as chances de recuperar a capacidade da criança de aprender a se relacionar com os outros e construir uma linguagem significativa”, afirma a psicopedagoga Yasmine Martins, também do Instituto Pensi. Mas não é sempre que isso acontece.

De fato, não se sabe quantas pessoas estão incluídas no espectro do autismo. De dois em dois anos, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos publica uma pesquisa sobre o número de crianças diagnosticadas naquele país que serve como referência em todo o mundo. O último, de dezembro de 2021, indicava que 1 em cada 44 crianças aos 8 anos de idade estavam incluídas em algum grau da síndrome. A pesquisa do ano anterior relatava 1 em cada 54 crianças; em 2012, esse número era de 1 em cada 88 crianças.

O transtorno hoje é dividido em três níveis, de acordo com a severidade, considerando o quanto de apoio é exigido para realizar as tarefas do dia a dia. No caso do autismo mais severo, é preciso muito suporte para aprender habilidades importantes como higiene pessoal e até mesmo se alimentar sozinho. O autismo leve, chamado de grau de suporte 1, permite que a pessoa tenha uma vida funcional, com menos necessidade de apoio, embora também seja considerada “esquisita” e tenha dificuldade de manter uma conversa e fazer amigos.

“Nem sempre o autista aparentemente mais inteligente é mais funcional”, explica o neurologista pediátrico Carlos Augusto Takeuchi, do Hospital Infantil Sabará. “Você pode ter, por exemplo, uma pessoa que sabe de cabeça todas as estações de metrô da cidade, mas não consegue pegar um prato para comer, não consegue ir ao banheiro.”

O médico explica que um sinal de alerta não é suficiente para se fazer um diagnóstico. Há vários critérios que devem ser levados em conta. “Uma criança de dois anos que não fala e não olha no olho dos pais, que não repete algumas palavras, não aponta e dá tchau já é algo que chama atenção”, explica. Mesmo assim, o transtorno é difícil de diagnosticar e principalmente de ser aceito pelos pais. Por isso mesmo, as dificuldades para lidar com o TEA são imensas e custosas, principalmente para quem depende do sistema público de saúde.

O caminho é longo e nem sempre o diagnóstico é acertado. “Quem tem plano de saúde pode ter acesso a médicos, mas não necessariamente eles estão bem capacitados para lidar com os problemas de cada pessoa”, afirma a psicóloga Maria Clara Nassif de Souza Assis, diretora da Cari Psicologia, clínica especializada em TEA que realiza o acompanhamento individual e multidisciplinar do distúrbio. “É preciso um trabalho minucioso que leva tempo para avaliar as funções como linguagem, atenção, imitação gestual e verbal, questões sensoriais e identificar as potencialidades de cada pessoa.”

A jornalista Renata Simões, repórter do programa “Metrópolis”, da TV Cultura, conta que procurou terapia, psiquiatra e buscou manuais que lhe dessem explicações sobre o que parecia normal para os outros mas não para ela. “Parecia que tinha alguma coisa que todo mundo entendia e para mim não fazia o menor sentido.”

O diagnóstico, embora tardio, representou um alívio e a certeza de que muitos sofrimentos e algumas situações difíceis, gafes e dificuldades de relacionamento ao longo de sua vida poderiam ter sido evitados. “Quando você tem uma compreensão de como as coisas operam, não é que elas deixam de existir, mas mudam de prisma”, afirma.

A vida da arquiteta Eliane Moura Quaresma também foi marcada por altos e baixos na saga por tratamento, escola e atividade profissional de seu filho Lucas, diagnosticado aos 3 anos com autismo severo. A família, que mora em Belém, percorreu várias instituições em São Paulo e no Rio de Janeiro até encontrar uma que a ajudasse. “Lucas tinha capacidade de aprender, mas as pessoas não acreditavam”, conta a mãe. Alguns especialistas chegaram a dizer que o filho se tornaria um adulto sem condições.

Diferentemente das previsões, Lucas, hoje com 28 anos, formou-se na faculdade em design de produtos e começou uma atividade ligada desde criança a sua maneira de se expressar. É autor e ilustrador de revistas em quadrinhos, reunidas no site HQs do Lucas, e tem planos para fazer um ebook, além de outros produtos.

A inserção na sociedade, tão ansiada por autistas, suas mães e pais, passa pela inclusão profissional. Quando o campo do espectro está no altamente funcional ou de grau 1, isso é perfeitamente possível, mas só agora começa a ser reconhecido. “As descrições mais clássicas do autismo se referiam à síndrome infantil, os adultos com grau leve não tinham acesso a diagnóstico e tratamento”, diz a psiquiatra Graccielle Rodrigues, vice-coordenadora do Ambulatório de Cognição Social Marcos Mercadante (Teamm), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Para suprir essa necessidade, o Teamm também ajuda a fazer a ponte com algumas empresas para colocação no mercado de trabalho.

Esse também é o objetivo da Specialisterne, organização social criada em 2004 pelo dinamarquês Thorkil Sonne, pai de um garoto autista com dificuldades de interação e comunicação, mas com uma memória fantástica e raciocínio lógico diferenciado. Hoje com presença em 23 países, entre os quais o Brasil, a organização oferece cursos para as pessoas atuarem profissionalmente e terem sucesso, mas também se dedica a capacitar quadros das empresas para lidar da melhor maneira possível com esses funcionários.

“Nosso foco são autistas que queiram trabalhar com computador em qualquer área, geralmente atividades com rotinas bem estruturadas que demandam atenção e concentração”, conta o diretor-geral da Specialisterne Brasil, Marcelo Vitoriano. A facilidade em reconhecer padrões, o perfeccionismo, o hiperfoco e raciocínio lógico fazem com que o colaborador autista se destaque principalmente na área de tecnologia. É preciso, no entanto, algumas adaptações – nos dois lados – da dinâmica de trabalho. Enquanto a pessoa com TEA passa por um acompanhamento mental e prático nos primeiros meses de trabalho com ajuda de psicólogos e centros especializados, os colegas devem aprender sobre as características do profissional.

Do lado das empresas, o desafio da inclusão não é apenas acolher pessoas com autismo, mas a percepção de que todo mundo ganha ao se abrir a todo tipo de diferença. Vivian Broge, diretora de recursos humanos da rede de shoppings Iguatemi, uma das empresas que trabalham com a Specialisterne, conta que, no começo, os gestores tiveram um certo temor de não estarem preparados para acolher os novos funcionários e foi preciso um trabalho de conscientização e principalmente de quebra de estereótipos. “É uma experiência de aproximação, empatia, olhar cada pessoa que tem um talento e pode contribuir para o todo.”

Do lado dos autistas, a adaptação também é difícil, como conta Julie Goldchmit, que acaba de lançar o livro “Imperfeitos” (Maquinaria Editorial, 2022). O livro relata os desafios enfrentados por ela para se inserir no mercado de trabalho. Goldchmit tem 25 anos e hoje é assistente de marketing da Unilever. Diagnosticada com autismo aos 15 anos, passou por dificuldades de aprendizado, exclusão e bullying. Depois, precisou enfrentar a falta de vagas para pessoas com deficiência em empregos formais e sofreu uma série de assédios no ambiente de trabalho até encontrar uma oportunidade na Unilever, empresa que apresentou um plano de orientação e de carreira ajustado ao seu perfil.

No caso da Unilever, a inclusão faz parte da meta global da empresa de até 2025 se tornar referência dos profissionais com deficiência. “Hoje, 5% dos estagiários no Brasil são pessoas nessa categoria”, conta Luana Suzina, gerente de Equidade, Diversidade e Inclusão. “Elas participam do processo e têm uma relação de pertencimento com a empresa e o trabalho que realizam.” Da parte de Goldchmit, seu sonho é ser “embaixadora da diversidade” e, como explica, mostrar que a inclusão de profissionais com autismo é um ganho para empresas e sociedade.

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