Vera Holtz leva Yuval Noah Harari e “Sapiens” ao palco

Peça “Ficções”, em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, chega em janeiro ao Teatro Faap, em São Paulo

A atriz paulista Vera Holtz, lá no fim da década de 2000, sentiu que era hora de voltar a viver em São Paulo depois de quase 40 anos no Rio de Janeiro. Comprou e reformou um apartamento nos Jardins, acreditando que, mais perto das origens, fixaria pouso de vez na cidade. “Eu me dei conta de que minha vida não existe em um ponto só e retornei à ponte aérea porque me transformei com tempo e sinto falta da família afetiva que me adotou no Rio”, conta.

Sempre disposta a reescrever as próprias narrativas, a artista abraça um trabalho que trata exatamente disto, da recriação das crenças e da disponibilidade para rever conceitos. O espetáculo “Ficções”, que estreou no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, e chega em janeiro ao Teatro Faap, na capital paulista, é uma adaptação e direção de Rodrigo Portella para o livro “Sapiens: Uma breve história da humanidade”, de Yuval Noah Harari.

Com 23 milhões de exemplares vendidos, a obra do historiador e filósofo israelense enfoca a capacidade do homem de inventar histórias compradas pelo coletivo. Noções de Estado, religião, economia e comportamento são discutidas no livro que foi publicado no Brasil em 2015, quando Holtz leu e, encantada, saiu presenteando dezenas de amigos. “Harari me levou a uma reflexão profunda porque é comum a gente se ver dentro de um sistema inventado pelos outros que não tem nada a ver com a gente.”

No palco, a atriz aparece acompanhada do violoncelista Federico Puppi. O dramaturgo e diretor Rodrigo Portella concebeu 14 cenas sobrepostas que formam o que ele chama de “uma peça espatifada” a partir de um recorte capaz de dialogar com as ideias de Harari. “A grande parada é pensar que, se tudo é ficção, é possível criar qualquer narrativa e, depois, recriá-la”, explica ele.

Desta forma, Holtz instiga a plateia sem deixar de ser ela mesma ou se caracterizar como personagem. Tudo ganha a cena em uma linha performática. Entre outras imagens, a artista representa um fóssil de uma espécie humana enterrado em uma caverna, uma atriz que abandona tudo para virar nômade e até um asno. Em outra passagem, ela interpreta uma mulher que conversa ao telefone com o marido e o chama de Harari. “Eu brinco com o fato de a Vera ser uma atriz e a cada momento poder aparecer como uma coisa diferente”, comenta Portella.

A proposta, porém, deixou Holtz insegura no começo dos ensaios. Aos 70 anos, ela temeu que o corpo não respondesse às expectativas do encenador. “Entro em cena e não me reconheço porque, na minha idade e ainda mais depois da pandemia, existe perda de mobilidade, a voz pode fraquejar, me desafio todos os dias para sentir até onde meu corpo aguenta ir.”

Só que Holtz subverte as próprias narrativas, logo não se entrega fácil. A menina da interiorana Tatuí, de sotaque carregado, ganhou projeção em espetáculos dirigidos por Gerald Thomas, Marcio Aurelio e Antônio Abujamra. Foi nas novelas de televisão, entretanto, que conheceu a popularidade — a ponto de lotar teatros durante cinco anos da década de 1990 com “Pérola”, peça de Mauro Rasi, que lhe rendeu prêmios e reconhecimento da crítica.

O tempo, porém, fez a intérprete enxergar que se vai pisar no palco quer fugir do óbvio. Holtz perdeu o interesse por dramaturgias convencionais e, como em “Ficções”, prefere o terreno da performance. Trabalhar com Portella, de 45 anos, coloca a artista em contato com novas gerações, algo que tem perseguido nas incursões como diretora de montagens como “Sonhos para Vestir” (2010) e “A Peste” (2019). “Estou atrás do cruzamento de linguagens, quero me juntar a pessoas com passaportes diferentes e ver as experiências de todos misturadas.”

Leia a seguir

Pular para a barra de ferramentas